terça-feira, 31 de maio de 2022

UMA CARTA DE ALEGRIA


Uma amiga minha, companheira da minha debilidade, escreveu que ‘as coisas mais belas da vida não podem ser vistas com os olhos porque devem ser sentidas com o coração’. Eu concordo com ela, em parte. Porque eu quero enxergar o que nunca vi. Como ela eu nasci cego. Não pude ter a experiencia de discernir as formas e as cores.

Eu era ajudado por amigos queridos que me diziam como era cada coisa, que tamanho e dimensão, e aprendi o nome de cada cor, embora não tivesse a menor ideia do que isso significasse. Me ensinaram a usar as minhas mãos para reconhecer objetos e rostos de pessoas, animais, texturas de tecidos e frutas. Desenvolvi uma audição incrível e brincava com minha família de escutar o que eles não ouviam. Era capaz, diziam eles, de ouvir o som do silencio.

Eu sempre tive vontade de ver, como todo mundo. Mas onde eu morava não tinha médicos e minha família não tinha dinheiro, mesmo que algum doutor especialista tivesse o poder da cura. Ontem á noite eu ouvi pelo radinho da minha casa que passará amanhã por minha cidade um homem do vilarejo de Nazaré. Todo mundo sabe que Nazaré é terra de ninguém e que nada importante acontece lá.

Mas as notícias são de que este homem está revolucionando a vida das pessoas. Muita gente o segue por onde ele vai. Há relatos de cura física acontecendo. Já falei para meus irmãos me levarem amanhã cedo no auditório da nossa cidade. Sei que o lugar é grande e ficará lotado.

Eu insisti para eles me fazerem ficar frente a frente com este prodígio de Nazaré. Eu não tenho vergonha. Vou pedir com insistência para ele colocar suas mãos nos meus olhos. Eu creio nele, mesmo que nunca o tenha visto antes. Estou ansioso e com muita expectativa! Eu tenho certeza de que amanhã à tarde, depois que ele me tocar, eu vou saber finalmente o que é uma cor, um rosto, um por do sol. E depois vou levar outros cegos até o nazareno. Porque a minha felicidade vai ser tão grande que não vai caber em mim.

Caleb Mattos

segunda-feira, 30 de maio de 2022

UMA CARTA DE ESPERANÇA.


Como é difícil suportar esta realidade. Eu nasci numa família e era muito feliz. Ia na casa de meus tios, me encontrava com os amigos, conversava longas horas com todos que eu conhecia sobre todo tipo de assunto.  Minha namorada e eu estávamos já fazendo planos de nos casar e morar numa vila muito bonita aqui perto. Os dias alegres eram sucedidos pelas noites de canção.

 Até então eu nada sabia dela. Todo mundo se calava porque era um tabu comentar acerca dos que sofriam desta deformidade. E como devia ser dolorido não ter mais autorização para morar em sua casa, sendo obrigado pela lei a residir em comunidades pequenas onde conviviam os portadores da temida lepra. Então o impensável aconteceu.

Acordei sentindo muitas dores nas articulações, nos olhos e nos pés. Minha pele antes lisinha começou a se enrugar e formou nódulos, bolhas. As úlceras se estendiam sobre mim numa velocidade impressionante. Fui perdendo o tato e a capacidade de sentir a temperatura. Meu rosto ficou irreconhecível. Chorei dias e noites antes de me despedir dos meus pais. Agora estou morando entre os "tsaraath", iguais a mim em todos os sentidos.

Fazem dez anos que estou aqui e não posso entrar mais na cidade. Não posso mais falar com ninguém fora desta vila. Não vejo mais gente normal. Minha namorada já se casou com outro. Meus pais já morreram de tristeza. Acordo molhado em minhas lágrimas e durmo sob o ataque da melancolia.

Fiquei sabendo que anda por estas bandas um homem que dizem ter o poder de Deus. Me falaram que ele fala uma palavra e a doença some instantaneamente. Disseram que muitos já foram para suas casas limpos. O pessoal aqui não acredita muito nisso. Mas eu resolvi tentar. Porque o ‘não’ eu já tenho mesmo.

Então essa tarde, quando começar a ficar escuro, para que ninguém me veja na rua, eu vou procura-lo. Quem sabe o encontro. Talvez ele tenha nojo de mim e nem se aproxime. Mas, pode ser que ele seja tão bom como falam e me cure. Meu coração está cheio de esperança. Pela primeira vez em tantos anos que moro neste fim de mundo esquecido não chorei hoje. Porque hoje parece que desceu sobre mim uma certeza. A certeza de que meus dias de agonia e vergonha terão fim.

Caleb Mattos

sábado, 28 de maio de 2022

UMA HISTÓRIA DE AMOR

 

UMA HISTÓRIA DE AMOR

O Deus de amor e de imensa bondade nos mostrou algo que nunca havíamos encontrado. Nossos deuses antigos nos davam medo. Não sabendo quem eram e como agiam, oferecíamos a eles sacrifícios, tanto para pedir clemencia como para suplicar benevolência. Com o tempo aprendemos a domina-los. Então construímos representações deles apoiadas em altares. Agora, devidamente localizados e com traços humanos estaria tudo bem entre nós e as divindades.

O nosso contato com eles era formal como um negócio feito em nossos sistemas de escambos. Uma permuta de interesses. Em alguns momentos parecia, no entanto, que sempre estávamos em dívida com nossos deuses. Porque eles enviavam a peste, a morte, as guerras. Perdíamos gente querida e sofríamos o roubo de nossas posses. Aumentávamos então nossas oferendas sempre com o medo de que não fossem suficientes.

Um certo dia chegou em nossa aldeia um homem feliz. Trazia uma mensagem diferente de tudo que escutamos. Ele dizia que há um Deus supremo, em nada semelhante aos deuses que tínhamos. Um Deus não criado, não imaginado, por ser eterno. Um Deus que do nada criou o tudo e do pó fez o homem e a mulher. Que tinha prazer em conversar com esse casal em todos os sóis e em todas as luas. Tudo ia no ritmo da ordem e da harmonia até chegar um bicho asqueroso e ruim que perverteu a tudo.

Nossos pais ancestrais ficaram com vergonha do que fizeram e se esconderam. E começaram a culpar um ao outro pela desobediência em que os dois eram responsáveis. Mas este Deus único e eterno prometeu que eles seriam perdoados e que colocaria neles um coração novo, de carne e não de pedra, um coração que voltaria a conversar e ser feliz com este Deus.

Então ele mandou seu filho. Seu filho nasceu como um homem, mas não foi corrompido como um homem. Ele disse que ia pagar o preço de toda desordem no mundo e de toda angustia das pessoas para que assim elas pudessem parar de ter medo. E não precisassem mais de tantos deuses. E não fossem necessárias mais oferendas. Que bastava crer no seu filho e obedecer a sua palavra.

Então, nós o povo desta terra, ficamos muito alegres porque no fundo esperávamos que existisse um Deus assim. Amigo da gente, que está o tempo todo nos ajudando e conversando, que não precisa de trocas porque ele tem tudo que precisa e por nos amar tanto dá tudo que nós precisamos. Abandonamos nossos altares e nossos ídolos. O homem que veio aqui nos ensinou a adorar. Adoramos o Deus não criado e eterno. Ele mudou o nosso coração. Hoje ele mora aqui com a gente.

Caleb Mattos