segunda-feira, 25 de agosto de 2014

MISS GRITO.


Ela morava no final da nossa rua. Tinha vários filhos e eu, ainda criança, ficava como qualquer moleque, torcendo pelo próximo show.

Ela gritava muito alto, xingando o marido, os filhos, a vida, a sorte ou azar, os governantes, o país, a dor de cabeça, o carteiro, o leiteiro, quem quer que fosse lido por ela como inoportuno.

O grito incluía palavras que não posso escrever aqui. Palavras agudas, pesadas, que potencializadas com alto volume se tornavam inconfundíveis: só podiam vir dali mesmo, daquela casa diante da qual todos tinham que passar.

E ficou o apelido: Miss Grito. Não lembro se ela era bonita, nem mesmo do seu rosto, porque aquilo que me marcou foram os berros que durante toda a minha infância eu ouvi. Não sei como viviam seu marido e seus filhos, não os conhecia, parecia que ela morava sozinha porque raramente eu os enxergava na frente da casa – eram silenciosos, quase mudos, pessoas sem voz.

Eu cresci e me mudei. Nunca mais eu soube dela. Não sei se continua viva, se seus filhos já se casaram, se seu marido ainda está com ela. Mas a Miss Grito me voltou á memoria neste artigo como símbolo da angustia de um ser que parecia deslocado dentro de sua própria alma.

Gritos que talvez fossem marcas de um coração machucado ou de um espirito frequentemente perturbado por suas lutas, sua falta de paz, seu desespero. Ela gritava, hoje eu sei, não porque gostasse de faze-lo mas com certeza pela falta. Falta de sentido, falta de harmonia consigo e com outros, falta de coragem de pedir ajuda, falta de Deus...

Como é triste a vida de quem vive gritando. Paulo diz que ‘toda gritaria deve ficar longe de nós, bem como toda ira’. Isso é oposto á presença e ação do Espirito de Deus que é ‘amor, alegria, paz, bondade, mansidão e domínio proprio’. Porque onde habita o Espirito desabita o grito.

 Onde mora o Espirito não há lugar para perturbação. Onde ele faz sua morada a ira bate em retirada.
Eu gostava do espetáculo como criança. Hoje não. E espero que nenhum de nós se torne como ela ou conviva muito tempo com alguém como ela. Gritos espantam para longe o amor e a ternura. Mas a gentileza é a sua morada preferida.

By Caleb Mattos.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

MOTOCICLETA.



Ela era vermelha, novinha, saída da agencia e paga com meu salario. Tudo bem que não era potente mas era meu maior prazer pilotá-la. Eu a usava da manhã até a noite;  do serviço militar me dirigia ao trabalho e de lá para a escola. O dia todo na motocicleta. Nos fins de semana muitos passeios, gasolina barata, pouco consumo, muitos quilômetros. 

Gostava também de tirar racha com amigos, um deles hoje também pastor, era meu companheiro nas aceleradas. Ele não vai gostar de ler isso mas eu sempre o deixava para trás na poeira, ou melhor, na fumaça, já que a minha tinha um motor de 2 tempos que enchia o ar de aroma de óleo combustível.

Ela me levava onde eu queria e eu gostava de tudo nela. Até do cheiro que emitia, do ronco que fazia no tanque de gasolina nas reduzidas, do funcionamento do motor barulhento. Parecia ser parte de mim ao estar comigo em todas as horas.

Depois eu a vendi. Troquei por outras até nunca mais usa-las. Mas ficou na memoria aquele sentimento gostoso de liberdade, vento no rosto, aventura em alta velocidade, sensação de que nada poderia me limitar na vida.

O tempo, como tudo, passou. Eu percebi que a chegada de limites próprios da condição da maturidade instalou em mim uma série de trocas: velocidade pela tranquilidade; aventura pela segurança;  solidão pelos compromissos. 

Mas a motocicleta nunca tirou de mim uma coisa: a metáfora de ir de um ponto estático a outro. Seja lenta ou rapidamente. Seja hoje ou amanhã. Seja de forma silenciosa ou barulhenta. Mas é preciso mudar.

Porque a vida nos força a isso todos os dias e quem estaciona se torna como uma motocicleta parada no tempo: pegando ferrugem e se deteriorando. Para chegar até ao ponto que Deus permite para nós precisamos montar novamente em nossas motocicletas, colocar o capacete, dar a partida e acelerar. 

Enquanto a viagem acontece, vamos aproveitar o cenário. Quando chegarmos lá ficaremos agradecidos ao Pai que nos permitiu jamais fazer da nossa vida um monte de peças desmontadas mas um veiculo que nos levou para mais longe.

By Caleb Mattos.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

PERDIDO.





Ganhei minha primeira bicicleta aos 9 anos. Era uma Monark, e tinha um parafuso no quadro que permitia que ela se dobrasse ao meio para caber dentro de um carro.

Gostava demais de passear nas ruas com ela. Era meu primeiro veiculo a permitir ir mais longe e voltar com conforto e a sensação de liberdade.
Um dia decidi explorar o Horto Florestal que se estendia perto da minha casa. Até então não havia a Unesp ali e vários caminhos permitiam adentrar a mata e sentir o perfume gostoso dos eucaliptos. 

Não sei quanto tempo passei ali dentro pedalando, o que sei é que chegou uma hora em que me dei conta que não sabia mais voltar. Estava perdido.
Pensei em voltar mas vários cruzamentos na minha frente me deixavam confuso. 

Senti muito medo, não tanto de estar ali mas de não achar o caminho de casa. Nesse estado de confusão fui abordado por um pescador, de varinha nos ombros, que subia por ali e me perguntou: ‘Está perdido? Deixa que eu te levo para a saida’. 

Eu o segui e finalmente avistei um novo bairro, muito distante da minha casa. Percebi que, absorvido pela diversão e prazer, eu me distanciara demais do ponto original.
Agradeci ao meu salvador e voltei para casa feliz por ter achado a saída e estar em segurança...

Nem sempre quando se está perdido se percebe.
A consciência do prazer e da diversão é maior do que a percepção de um provável risco ou ameaça. Mas, chega uma hora em que se quer voltar para casa e se nota que não se sabe mais como. 

Aparecem varias trilhas confusas á frente, cada um delas uma opção. Qual delas, porém, seguir?
Nessas horas sempre chega um Salvador. Ele vem do nada, inesperado. Até parece que não estava ali há um minuto e de repente surge. 

E ele sempre pergunta: ‘Está perdido?’ A sua decisão em nos ajudar a encontrar o retorno nos deixa felizes e gratos porque ele nos livra dos medos, da incerteza do próximo minuto, do passar das horas e da escuridão.

Encontrei com meu Salvador há alguns anos. Ele me fez a mesma pergunta. Que opção eu tinha senão concordar que estava mesmo perdido? Deixei ele me ajudar, me socorrer, me salvar. E hoje, toda vez que algo ameaça me levar longe demais sem saber como voltar eu o sinto de novo falando comigo e fazendo a mesma pergunta de sempre.

Eu o deixo mostrar a saída da minha confusão. E descubro, mais uma vez, que ele sempre esteve lá pronto a mostrar o caminho. Não sei o que seria de mim sem ele. Talvez continuasse envolvido pela minha desorientação e angustiado sem saber o que fazer.


Eu desejo que você também descubra o Salvador nas confusões da sua vida. Quero que você o escute, que você permita que ele mostre o caminho da salvação, da recuperação.

 Ele está aí, perto de você, fazendo a pergunta de sempre. Peça sua ajuda, admita que está perdido e descubra, então, a felicidade de ser salvo e dirigido por aquele cujos olhos enchem os céus e a terra. 

terça-feira, 5 de agosto de 2014

CICATRIZ.



Que eu recorde, meu primeiro acesso de raiva aconteceu com 11 anos de idade.
Eu estava procurando um livro perdido em meio a um mar de folhas guardadas e empilhadas dentro de um armário com porta de vidro. Ao abri-lo, tudo despencou lá de cima. 

Pacientemente eu fui guardando a montanha, sem encontrar o que buscava, e por fim fechei a porta. Não travei direito, a porta se abriu e novamente a montanha de papel fluiu ladeira abaixo.

Furioso com aquela desfeita da porta eu lhe dei um murro com toda força , o que quebrou o vidro e abriu a lateral da minha mão direita. Muito sangue, choro, desespero, corrida ao hospital e pontos, vários deles. A cicatriz é visível até hoje, como a vingança da porta contra minha fúria.

De lá para cá eu tento dominar meus acessos de raiva. Já aprendi que, se eu sair batendo em tudo, o mais prejudicado serei eu e meu corpo. Então, graças à novas compreensões e aprendizados, especialmente vindos das Escrituras, eu levo uma vida relativamente tranquila no campo emocional.

Mas sei que as cicatrizes permanecerão comigo. Há  algumas delas não visíveis que são fruto da experiência em lidar com outras portas que foram abertas abruptamente e que jogaram na minha cara papéis, informações, novidades, sugestões e coisas que eu nem sabia da existência. 

Acredito que a gente perde o controle mais pela quantidade de pressões que caem à nossa frente todos os dias do que por alguma falha interna de temperamento.

Não conheço ninguém que tenha tanto controle assim o tempo todo. Me lembro da charge que vi, onde um monge, rodeado de outros perde a paciência com uma impressora que não funciona e começa a xinga-la pela teimosia. Vem o chefe dos monges e dá uma lição sobre temperança, autocontrole, domínio de si, paz. Ele responde: ‘é muito fácil resolver esse problema’. 

Meia hora depois, diante de uma impressora que não se dobra nem ao mestre da serenidade, ele, com um machado na mão desfere um golpe certeiro na máquina, enquanto grita: ‘Morra, filha do demônio’...

Pois é, manter o controle é o desafio de cada dia. Nem sempre dá certo e daí sobram as cicatrizes. Mas elas também são úteis. Hoje eu olho para as minhas e agradeço a Deus porque elas me fizeram ser quem sou. 

Não jogo na lata de lixo o que me aconteceu porque esse legado é único e somente eu o vivi, trabalhei com ele e o transformei em voto de superação e crescimento.

Leio na Biblia que ‘todas as coisas são usadas por Deus para o bem daqueles que o amam’. Então, o que entendi é que o ponto sobre a cicatriz foi a cura. Hoje ela me recorda que a mão amorosa de Deus me costurou quando eu estava rasgado e sangrando.

 Eu sobrevivi aos golpes que dei, e que me feriram. Se estou costurado em varias partes, por dentro e por fora, isso é salvação. Deus não me deixou agonizando, mas no meio das feridas, como cirurgião hábil, garantiu o meu presente e meu futuro.


Não amaldiçoo mais aquele armário. Ele estava lá como a primeira lição da escola da vida.