quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Voce passaria neste teste?



Era mais uma ocasião em que comentávamos com as pessoas o projeto de assistência a moradores de rua. Contávamos o que víamos, como foi a reação deles ao receber uma ‘quentinha’ e uma peça de roupa.

Precisávamos de mais marmitas de isopor para acomodar melhor o alimento e mantê-lo quentinho para eles. Foi quando eu ouvi a pérola, de alguém numa condição financeira das melhores, dizer sem nenhum rodeio: ‘Se é para gente da rua mesmo, por que vocês não cortam garrafa Pet no meio e colocam a comida ali para servir?’

Eu tenho um péssimo hábito de ficar quieto. Quando algo muito absurdo entra pelos meus ouvidos eu fico paralisado como que tentando entender se ouvi um dialeto tribal, uma voz do além, um grito neandertal ou um som extraterreno. Preciso ter pelo menos dez por cento de raiva, como me disse um amigo há um bom tempo. Me limitei a dizer para a pessoa que não usaríamos a brilhante ideia mas continuaríamos em busca de doações de marmitas.

Cada dia mais eu me pergunto o quanto da mensagem de Jesus de fato existe no coração das pessoas que todos os domingos entram e saem pelas igrejas. Porque foi o cristianismo o responsável por toda melhora social no mundo desde seu aparecimento. Graças ao movimento a escravidão foi abolida, as universidades foram criadas, hospitais e orfanatos se multiplicaram e a compaixão pelos pobres e desfavorecidos cresceu. Se deve ao cristianismo a vivencia do amor ao semelhante como nenhum outro segmento social jamais criou.

De forma que a minha indignação, que na maior parte do tempo é expressa em textos, se dá por dois motivos. Uma porque aquele infeliz comentário sinaliza algo do tipo: ‘o mundo é dividido entre dois grupos: os que tem, e os que pedem. Eu sou do grupo dos que tem, mas não dão’.

E o segundo motivo é que essa fala vinda de alguém supostamente cristão denuncia que as igrejas estão formando consumidores de religião e não seguidores do amor. Que levante a mão quem não aguenta mais a reclamação de ‘crente’ porque o ar-condicionado está muito gelado ou porque o ventilador está forte, ou porque o som está alto, ou porque não tocou aquela música que eu pedi.

Eu sei, ajuntamento de gente é garantia de atritos. Não seria diferente na igreja. Eu sei, as pessoas falam o que tem dentro do seu coração. Eu sei, a vida não é perfeita. Eu sei, aqui na terra a igreja é militante. Eu sei, Moisés aturou o povo queixoso 40 anos. Eu sei, Deus ama as pessoas mesmo assim. Mas tem hora que dá uma vontade de usar o chicote...

Eu acho que no fundo essas coisas acontecem como um teste de verificação de conteúdo. Se eu sou solicitado a colaborar para mitigar o sofrimento de alguém e dou migalhas isso revela mais de mim do que do pobre. 

Pobre sou eu que tendo muito nego tudo e ofereço resto. E nem sei que sou um miserável e cego. Penso estar agradando a Deus, mas ando longe da companhia dele. Talvez me veja até no céu, mas quão perdido posso ainda estar.
Caleb Mattos.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Sabor de mel num coração de fel.

O poder do querer.



‘Senhor, eu quero ver!’, respondeu o homem.

Há uma história registrada no Evangelho de Lucas que fala de um cego que também era mendigo. Diariamente ficava assentado á beira do caminho esperando uma esmola de alguém que cruzasse aquele trajeto.

Quando ele descobre que Jesus está passando por ali grita duas vezes pedindo a atenção do Mestre. As pessoas que acompanham Jesus até tentam faze-lo calar-se, mas ele insiste pedindo misericórdia. E Jesus não só para o trajeto e fala com ele, como também o cura instantaneamente, restaurando-lhe a visão.

Mas não sem antes perguntar: ‘O que você quer que eu lhe faça?’ 

O cego tinha perdido apenas um dos sentidos mas ainda podia ouvir e falar. E privado do que lhe restringe ele usa o que tem pedindo para poder enxergar. Essa história me chamou a atenção porque não ver é a causa de estar sentado á margem da vida.

Não estar mais encaixado, incluído, partícipe. Quem vive á margem é marginal no sentido correto desta palavra. E acontece de ser também marginalizado. Diz o ditado que ‘o pior cego é aquele que não quer ver’. Porque ainda que privados da capacidade de perspectiva é possível restaurar a dimensão mais ampla de possibilidades e oportunidades que diariamente se apresentam a nós.

Sempre me indaguei por que Jesus pergunta ao cego o que ele quer. Não seria óbvio? Eu sempre achei que sim. Mas descobri que nem todo aquele que é cego quer enxergar. A cegueira pode ser um lugar confortável para quem não deseja superar limites e ir mais além do que pode no momento.

A cegueira pode ser um tipo de dependência que nos ajuda a darmos desculpas pela situação ruim que estamos vivendo, em vez de agirmos com determinação para sairmos da escuridão da ignorância.

È preciso querer enxergar para enxergar.

E quando se decide enxergar não há mais razão para continuar à margem do caminho porque nos tornamos protagonistas da nossa realidade e vamos mudando tudo que nos bloqueava e nos limitava.

Diariamente passa por nós o mesmo que passou pelo caminho daquele cego. Só o fato dele vir até onde estamos mostra que seu desejo é nos tirar da marginalidade. Mas ele sempre vai perguntar se queremos. E aquele que quiser, bendito será.
Caleb Mattos.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Qual é a regra que você segue?



A gente se acostumou a associar regra a coisa ruim.

Nos mais diversos setores do convívio humano regra é vista como algo que limita a liberdade e impede pessoas de serem felizes. Se não tivéssemos tantas delas a vida seria mais simples, menos estressante e mais saudável, é o que se pensa.

Eu acredito que a regra não é por si mesma tão tirana assim. Os antigos filósofos clássicos elogiavam o ser de virtudes que se dirigia por escolhas menos dominadas pelo excesso. Quando fala da Lei, o apostolo Paulo reconhece que ela nos despertou a curiosidade para o mal, mas em si mesma, ela é boa e pura. Nós é que somos incapazes de sujeição a ela sem algum esforço.

Imagino se todos nós pudéssemos usar a liberdade sem nenhuma restrição e viver sem qualquer regra. A civilização como hoje a conhecemos simplesmente desapareceria, com disseram Nietzsche e Freud.

 Para Freud a cultura humana só pôde desenvolver-se a partir de um processo que sufocou as pulsões primitivas – a renúncia a estas pulsões são inculcadas na criança em sua primeira infância. Esta renúncia cobrará seu preço: em ‘O mal-estar na civilização’  Freud reconhece que, por mais segurança e bem-estar que a cultura - a civilização - tenha possibilitado ao homem, este continuará sempre nutrindo por ela um ódio profundo. 

“O que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e [...] seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas.”

Nietzsche, em tom jocoso, cita parte de um poema do alemão Heinrich Heine onde o mesmo comenta que a domesticação da civilização não conseguiu sufocar os instintos mais selvagens do ser humano. Diz o alemão pela boca do poeta mencionado:

“Minha disposição é a mais pacífica. Os meus desejos são: uma humilde cabana com teto de palha, mas boa cama, boa comida, o leite e a manteiga mais frescos, flores em minha janela e algumas belas árvores em frente de minha porta; e, se Deus quiser tornar completa a minha felicidade, me concederá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos enforcados nessas árvores. Antes da morte deles, eu, tocado em meu coração, lhes perdoarei todo o mal que em vida me fizeram. Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos – mas não antes de terem sido enforcados”.

Claro que nem o filosofo nem o doutor apontavam como saída a volta ao estado primitivo, nem um apelo á selvageria e á descivilização. Cada um na sua área trabalhou para, no vocabulário psicanalítico, ‘sublimar’ tais pulsões destrutivas, permitindo que se expressem mas sem causar violência a outro.

De qualquer forma a regra é necessária para disciplinar esta nossa natureza selvagem e primitiva. O comentário que Jesus faz das leis é que elas não existiriam se não houvesse transgressão. Falando sobre o tema do divorcio certa vez, e questionado por que Moisés permitiu a carta de divórcio, ele respondeu que foi por causa da dureza do coração humano.

 Se o coração humano é duro e insensível, não há outra maneira de lidar com ele senão pela vida de uma regra que o deixe menos atrevido e mais consciente de que não vive isolado numa galáxia.

Regras existem e são necessárias para que tenhamos um ordenamento social e um ordenamento psíquico e um pouco mais ajustado. A palavra regra veio do grego ‘trellis’ de onde surgiu ‘treliça’. A treliça é usada para que a videira saia do chão e cresça, tornando-se produtiva. Ela serve como suporte de crescimento e de maturação.

 Se a regra é, portanto, como treliça, podemos vê-la não como inimiga mas como aliada em nosso objetivo de produzir melhor, sermos mais educados, cultivarmos a ética e vivermos sob um padrão regulatório.

 Num país como o nosso, onde a lei é descumprida e a ética, uma exceção, adotarmos regras para cada área de nossa jornada ajuda a formarmos um novo pensamento cultural. Quanto menos aceitarmos a quebra de regras mais rápido veremos tudo mudar á nossa volta, para o bem de todos nós.
Caleb Mattos.

O que o Leonardo me ensinou sobre planejamento e execução.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Uma palavra sobre o preconceito.



É atribuída ao rabino Hillel, que viveu nos dias de Jesus, o dito: ‘Todo homem deve agradecer a Deus diariamente por três coisas: por não ter nascido um cachorro, por não ter nascido gentio, por não ter nascido mulher’. Pelo menos dois preconceitos muito fortes embasavam esta crença: preconceito racial e preconceito de gênero.

Mas esse era o panorama religioso daqueles dias. A Bíblia menciona uma mulher nascida na Grécia que era mãe de uma menina atormentada por maus espíritos. Esta mulher vai até Jesus e pede socorro, mas, de início, o Mestre lhe diz que ‘não pode pegar o pão dos filhos e dá-lo aos cachorrinhos’. Eu não consigo imaginar Jesus, o Filho de Deus, tendo alguma forma de preconceito de qualquer tipo, porque sua pratica diária mostrou justamente o contrário.

Ele só podia estar se referindo ao ditado de Hillel e reproduzindo esse pensamento cultural para seus discípulos questionarem a validade disso e assim desconstruírem essa cultura de rejeição. Não era diretamente para a mulher que ele falava, mas para todos que o acompanhavam.

 E com a insistência da mulher, assumindo que mesmo sendo uma cachorrinha, se contenta com uma migalha que seja que ele possa lhe dar, Jesus fica espantado com a fé que ela demonstra ter nele. Jesus se admira com aquela resposta e ordena a cura da garota, que acontece de imediato. A cura da menina fere na raiz o preconceito de raça e de gênero.

Porque se o Mestre concordou em atender aquele pedido é porque mostra que Deus sempre demole a construção social e cultural do preconceito. Ele não endossa a força opressiva da discriminação, tampouco justifica isso, mas mostra que há uma igualdade absoluta no ser humano: a igualdade do vazio e da necessidade.

Podem vir até ele todos sem exceção que serão atendidos, amados e supridos. Não importa onde nasceram, não importa que gênero tenham, Deus os vê como feitura das suas mãos, obra de arte do oleiro que ele é.

Diante de tanta polemica sobre atacar e ofender uns aos outros nestas duas questões o caminho cristão não é erguer uma bandeira a favor, nem erguer uma espada contra. E nem o consenso. O caminho cristão é aquele que abraça, acolhe e não ama baseado em classificações, mas ama sem condições prévias. Porque amor condicionado a alguma coisa é dominação. Melhor não amar fingido do que fingir amar.
Caleb Mattos.