Era mais uma ocasião em que comentávamos com as pessoas o
projeto de assistência a moradores de rua. Contávamos o que víamos, como foi a
reação deles ao receber uma ‘quentinha’ e uma peça de roupa.
Precisávamos de mais marmitas de isopor para acomodar melhor
o alimento e mantê-lo quentinho para eles. Foi quando eu ouvi a pérola, de alguém
numa condição financeira das melhores, dizer sem nenhum rodeio: ‘Se é para
gente da rua mesmo, por que vocês não cortam garrafa Pet no meio e colocam a
comida ali para servir?’
Eu tenho um péssimo hábito de ficar quieto. Quando algo muito
absurdo entra pelos meus ouvidos eu fico paralisado como que tentando entender
se ouvi um dialeto tribal, uma voz do além, um grito neandertal ou um som extraterreno.
Preciso ter pelo menos dez por cento de raiva, como me disse um amigo há um bom
tempo. Me limitei a dizer para a pessoa que não usaríamos a brilhante ideia mas
continuaríamos em busca de doações de marmitas.
Cada dia mais eu me pergunto o quanto da mensagem de Jesus
de fato existe no coração das pessoas que todos os domingos entram e saem pelas
igrejas. Porque foi o cristianismo o responsável por toda melhora social no
mundo desde seu aparecimento. Graças ao movimento a escravidão foi abolida, as
universidades foram criadas, hospitais e orfanatos se multiplicaram e a
compaixão pelos pobres e desfavorecidos cresceu. Se deve ao cristianismo a vivencia
do amor ao semelhante como nenhum outro segmento social jamais criou.
De forma que a minha indignação, que na maior parte do tempo
é expressa em textos, se dá por dois motivos. Uma porque aquele infeliz
comentário sinaliza algo do tipo: ‘o mundo é dividido entre dois grupos: os que
tem, e os que pedem. Eu sou do grupo dos que tem, mas não dão’.
E o segundo motivo é que essa fala vinda de alguém supostamente
cristão denuncia que as igrejas estão formando consumidores de religião e não
seguidores do amor. Que levante a mão quem não aguenta mais a reclamação de ‘crente’
porque o ar-condicionado está muito gelado ou porque o ventilador está forte,
ou porque o som está alto, ou porque não tocou aquela música que eu pedi.
Eu sei, ajuntamento de gente é garantia de atritos. Não
seria diferente na igreja. Eu sei, as pessoas falam o que tem dentro do seu
coração. Eu sei, a vida não é perfeita. Eu sei, aqui na terra a igreja é
militante. Eu sei, Moisés aturou o povo queixoso 40 anos. Eu sei, Deus ama as
pessoas mesmo assim. Mas tem hora que dá uma vontade de usar o chicote...
Eu acho que no fundo essas coisas acontecem como um teste de
verificação de conteúdo. Se eu sou solicitado a colaborar para mitigar o
sofrimento de alguém e dou migalhas isso revela mais de mim do que do pobre.
Pobre
sou eu que tendo muito nego tudo e ofereço resto. E nem sei que sou um miserável
e cego. Penso estar agradando a Deus, mas ando longe da companhia dele. Talvez
me veja até no céu, mas quão perdido posso ainda estar.
Caleb Mattos.
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